Quem poderia imaginar que quatro PMs de
uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) — cuja proposta é justamente a
de levar segurança a áreas pobres — fossem capazes de torturar até a
morte um inocente, com a cumplicidade dos superiores e a omissão de mais
21 policiais? Para qualquer pessoa que tenha conhecido a banda podre da
PM, como aconteceu com Rodrigo Nogueira, carioca de 32 anos, o Caso
Amarildo infelizmente não é exceção. Entre 2005 e 2009, o soldado
Rodrigo usou a farda, o distintivo e as armas cedidas pela corporação
para extorquir dinheiro de quem estivesse fora da lei ao cruzar seu
caminho, torturar traficantes, negociar e vender a liberdade de
perigosos assaltantes, julgar e condenar à morte criminosos e suspeitos
de crimes, participar de ações da milícia e matar a sangue-frio, sem
piedade. Pela primeira vez um ex-PM do Rio confessa publicamente ter
cometido tamanhas atrocidades e revela como funciona o esquema que
corrompe praticamente toda a cadeia hierárquica da corporação, do
soldado ao coronel.
Para
expiar sua culpa, Rodrigo criou um personagem, o soldado Rafael, o
protagonista que narra em primeira pessoa “Como nascem os monstros — A
história de um ex-soldado da Polícia Militar do Estado do Rio de
Janeiro” (Editora Topbooks), lançado mês passado. Qualquer semelhança
com a realidade não é nenhuma coincidência. Depois que foi preso em
novembro de 2009 na Unidade Prisional da PM — condenado por tentativa de
homicídio e de extorsão — Rodrigo considerou uma missão revelar o
sistema de uma das maiores corporações policiais do país, que está na
berlinda por episódios como o de Amarildo ou por ter perdido o controle
de manifestações que acontecem desde junho.
– Alguém precisava dar real entendimento
ao que acontece dentro dos quartéis da PMERJ, quais são os fatores que
transformam homens comuns, pais de família, em assassinos alucinados e
sem remorso, e isso só seria possível através do prisma de quem viveu no
inferno e que já não tinha mais nada a perder. Não escrevo para ser
reconhecido ou festejado, mas sim para que o nível de podridão da PMERJ
seja escancarado de vez e de uma maneira que não tenha mais volta, para
que todos os leitores abram os olhos e percebam que não passamos todos
de uma reles massa de manobra de interesses muito mais terríveis e
obscuros, que todos dias vendem morte e insegurança, para poder pedir
seu voto de novo daqui a quatro anos — afirma Rodrigo, em entrevista por
carta, na qual não deixou de responder nenhuma das 42 perguntas.
Apesar de ter confessado vários crimes, o
ex-PM Rodrigo Nogueira nega ter praticado justamente os crimes que o
levaram a uma condenação total de 30 anos e oito meses de prisão, na
esfera civil e militar. Ele foi condenado a partir do depoimento de uma
vendedora ambulante, que acusou ele e um colega de terem tentado
extorquir dinheiro dela e lhe dado um tiro no rosto, além de estuprá-la.
O caso ganhou as páginas policiais em 2009. Por ironia, a mulher era a
informante que havia ajudado o grupo de Rodrigo no plano de sequestro de
um traficante, cuja liberdade custou R$ 250 mil além de cinco fuzis.
– Não sei dizer especificamente quem foi o
responsável pelo disparo que a atingiu, mas ela foi submetida a exame
de corpo de delito que comprovou que ela não foi sofreu agressão sexual,
como havia denunciado — defende-se o ex-PM, acrescentando que foi
condenado por 4 votos a 3 e não quis fazer do livro “um plenário” para
sua defesa.
Nascido e criado numa área pobre de Nova
Iguaçu, Rodrigo cursou a Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa
Catarina, acreditando que ia participar de alguma guerra. Seu sonho era
pegar em armas para defender a sociedade, e foi isso que acabou
levando-o à Polícia Militar. O protagonista do livro inicia sua
trajetória na PM como uma espécie de paladino da Justiça, realmente
acreditando que iria “servir e proteger”, como diz o slogan da
corporação, copiado da polícias americanas. Aos poucos, a convivência
com colegas mais experientes, entregues à rotina de violência, o
transforma no que ele acreditava ser um combatente urbano, estimulado
pela retórica da guerra, na qual policiais viram soldados e traficantes —
e até moradores de favelas — os inimigos mortais. Recebe então a senha
para saquear os territórios conquistados, como despojos de guerra, e
eliminar pessoas a seu próprio julgamento, contribuindo para o círculo
vicioso de violência que impregna as ações da polícia nas grandes
cidades do país.
– Rafael sente muito remorso pelos
homicídios que cometeu, e isso fica bem claro na obra. É isto que mais
me incomoda, tanto que a metamorfose só ocorre depois que ele mata a
primeira vez — observa o ex-PM escritor.
Apesar de ter conhecido a corporação em
2005, Rodrigo conclui que foi a ditadura de 64 quem usou a PM, no
combate à subversão, pois foi quando, segundo ele, a força aprendeu a
torturar, sequestrar, “embuchar” (forjar provas) e até matar com extrema
eficiência e funcionalidade. Com a volta da democracia, diz ele, esses
poderes deveriam ter sido extintos. “Mas nenhum general foi aos
batalhões, nenhum curso de reciclagem foi formulado, nada. Enquanto as
tropas do Exército recolhiam-se aos quartéis, quem é que continuou nas
ruas? A PM. Tudo foi jogado em cima de homens semianalfabetos, mal-pagos
e mal-preparados”, afirma no livro, num dos raros momentos em que tenta
justificar os erros praticados pelos policiais.
Segundo Rodrigo, o ódio ao bandido vai
sendo construído já no Curso de Formação e Aperfeiçoamento de Praças
(CFAP), em Marechal Hermes. “A animosidade do policial com relação ao
bandido carioca é proveniente do mais puro revanchismo, e vice-versa.
Esse ciclo de violência e morte se renova dia a dia, com a repetição de
atos de barbárie de ambos os lados, mas sua origem é culpa do aparato
estatal”, afirma o soldado Rafael, no livro.
Mas o soldado Rafael perde de vez a
ingenuidade e começa a metamorfose de ser humano para monstro depois de
cometer o primeiro assassinato a sangue-frio. A vítima é um rapaz que
fora atropelado e estava caído no chão, se arrastando e implorando por
socorro. Minutos depois, os policiais constatam que era verdadeira a
versão de um popular que avisara que tratava-se de um assaltante. O
homem caído no chão fora atropelado por outro carro no exato momento em
que tentava assaltar um motorista na Radial Oeste, na Zona Norte do Rio.
Indefeso e todo arrebentado, o homem balbuciava algo, como se pedisse
ajuda. Mas o soldado Rafael decidiu matá-lo e depois simular um
tiroteio, como acontece em muitos casos forjados de autos de resistência
— o confronto armado com policiais. Em vez da pistola calibre 45 do
assaltante, Rafael apresentou na delegacia uma pistola velha. Apesar da
sensação de ter virado um monstro, com a execução sumária de um
moribundo, Rodrigo vendeu a arma e dividiu o dinheiro com o colega de
farda.
No livro, Rodrigo relata como vendeu
também um fuzil AK-47 apreendido após confronto com traficantes do Morro
do Borel, na Tijuca. Nesse tiroteio, dois bandidos foram fuzilados,
depois de reagirem à patrulha de Rodrigo. O comprador foi um chefe de
milícia. O matador do grupo, também conhecido como “quebrador”, era um
ex-PM, colega de turma de Rodrigo. Apesar de afirmar ter recusado
convite para integrar aquela quadrilha, Rodrigo conta também como
participou de ação da milícia contra um grupo de traficantes, cujo chefe
foi degolado por um homem especialmente encarregado da ação, numa
invasão minuciosamente planejada pelos milicianos. A ideia era mandar um
recado aos traficantes: desistam desse território. Essa operação
clandestina numa favela do Rio foi fruto de delação da namorada do
bandido, cansada de humilhações e agressões. A mulata sestrosa tinha
tudo do bom e do melhor na favela, mas o traficante não manifestava
qualquer respeito por ela. Acabou sendo remunerado com a traição.
Além do cheiro de pólvora produzido pelos
relatos sem firulas, o livro “Como nascem os monstros” poderia
funcionar como uma espécie de manual da corrupção na Polícia Militar do
Rio. Em nove meses, Rodrigo escreveu o livro de 606 páginas, que chamou
de romance não ficcional. Rodrigo garante que, tirando um ou outro
personagem ou características criadas para esconder os personagens com
os quais conviveu no dia a dia da PM, é tudo verdade. O livro destrincha
o esquema de corrupção que depende também de alguém disposto a
corromper o policial, seja um motorista pego sem habilitação, um usuário
de drogas detido logo após sair da boca de fumo ou um chefão do tráfico
vítima de um sequestro planejado por uma rara sociedade entre policiais
civis e militares. A pessoa é pega em flagrante e parte para o
“desenrolo”, que na gíria do submundo significa a forma de se livrar de
uma situação incômoda.
– O PM só vale o mal que pode causar –
escreve o soldado Rafael, que começou a carreira extorquindo o produto
do roubo praticado por pivetes e gangues de bicicleta e chegou a
participar do sequestro de um dos chefões do tráfico, que chamou de
Rufinol e tem tudo para ser Rogério Rios Mosqueira, o Roupinol. Era um
dos maiores fornecedores de drogas do Rio e dominou o Complexo de São
Carlos, no Estácio, procedente de Macaé. Foi um dos primeiros no Rio a
montar pequenos laboratórios de refino de cocaína, o que mostra que
tinha contatos que trazem a pasta-base da droga, diretamente da Bolívia e
da Colômbia. Aliado de Nem da Rocinha, Roupinol foi morto em cerco da
Polícia Federal, em março de 2010.
O sequestro de Roupinol foi planejado a
partir de informações dadas por um X-9 (informante), com quem os
policiais dividiam o dinheiro arrecadado em operações clandestinas de
combate ao tráfico, e mais tarde se tornou justamente a denunciante dos
crimes que levaram o soldado Rodrigo à prisão.
– Dentre todos os crimes que podem ser
praticados quando se está com a farda da PM o sequestro é, sem dúvida,
um dos mais maravilhosos – conta Rafael, o alter-ego do ex-PM Rodrigo
Nogueira.
O livro explica que o bandido sequestrado
pode ficar horas dentro de um carro da polícia ou até mesmo num
Destacamento de Policiamento Ostensivo (DPO), o avô da UPP. No caso de
os policiais bandidos serem surpreendidos pela corregedoria eles podem
alegar que não havia sequestro algum e que, na verdade, a pessoa detida
estava prestes a ser conduzida para a delegacia de polícia. Só que a
quadrilha que sequestrou o traficante não conseguiu comprar todo mundo, a
história acabou vazando e os envolvidos foram sendo de alguma forma
punidos, um a um.
Quando não conseguiam sequestrar um
chefão, policiais corruptos cobravam propinas do tráfico, pagas
semanalmente, diretamente aos agentes fardados e em carros da polícia,
em plena luz do dia.
– Depois de comprar um policial, o
bandido se sente um pouco dono dele – diz o soldado Rafael, demonstrando
rara consciência das consequências da corrupção para a atividade
policial.
Segundo Rodrigo, alguns policiais ficam
tão submissos ao dinheiro do tráfico que, no batalhão de Bangu nos anos
1990, era comum um famoso traficante desfilar pelas ruas da Vila Vintém
fardado e a bordo de uma das recém-chegadas blazer da PM. No São Carlos,
os policiais tinham que subir a ladeira com calça arregaçada até a
altura dos joelhos, com o fuzil cruzado nas costas, para mostrar que
estavam arregados. Até um blindado, o famoso caveirão, pode ser usado
como arma de coação na hora de determinar arregos a serem pagos, conta
Rafael. Numa das histórias, Rafael conta como o Grupo de Apoio Tático
(GAT) do qual fazia parte invadiu uma favela, dominou o local onde era
feita a embalagem da droga e torturou barbaramente, com crueldade ímpar,
dois traficantes desarmados. Eles foram executados sumariamente depois
que se percebeu que não tinham informações que levassem aos chefes da
quadrilha. As torturas e execuções são descritas em detalhes, assim como
as medidas tomadas para se minimizar os riscos de uma perícia, por
exemplo, constatar que as mortes não foram em confronto.
Na entrevista, o ex-PM Rodrigo confessa
que raramente os policiais que liberam bandidos perigosos ou vendem
armas para traficantes avaliam o mal que estão causando à sociedade:
– O policial que comete esse tipo de
crime não pensa nisso. Só o que importa é o lucro. É mais um sintoma da
deformidade moral adquirida, quando tudo se torna banal, explicável,
lícito – diz Rodrigo, que nega ter vendido armas para traficantes ou
colocado em risco inocentes, com a libertação de bandidos.
No livro, entretanto, relata a história
de um assaltante que estava na porta de um banco pronto para fazer uma
“saidinha de banco”, quando o PM Rafael o surpreendeu. Em vez de levá-lo
preso, negociou e vendeu sua liberdade. Deixou, portanto, solto um tipo
de criminoso frequentemente envolvido em latrocínio, roubo seguido de
morte.
Embora não detalhe todos os casos,
Rodrigo revela no livro como o esquema de corrupção parece estar mesmo
entranhado em cada setor de um batalhão da PM. O cenário da roubalheira é
a Tijuca, bairro de classe média, na Zona Norte da cidade. Ele
trabalhou no 6º BPM (Tijuca) e mostra a estrutura que é montada para
achacar cidadãos, comerciantes, suspeitos e criminosos. Uma simples
verificação de documento pode dar início a um processo que se torna
vantajoso para um policial que decide complementar a renda às custas de
propina. Segundo Rafael relata, tudo acontece com a cumplicidade e até o
estímulo de oficiais da unidade, que colocam os subordinados em
atividades estratégicas para a coleta do dinheiro. Em muitos casos, o
serviço tem uma taxa fixa e periódica, cobrada pelo oficial, que não
quer nem saber como o subordinado vai pagar o que foi combinado. É o
trato que garante a pecúnia extra e mantém o subordinado no lugar
determinado para conseguir o faturamento.
— Eu cansei de dar dinheiro na mão de
major, capitão, tenente. Até para trabalhar em lugar melhor tem que
pagar, senão o PM fica baseado a noite toda lá na Conchinchina. E os
coronéis pegam dinheiro de tudo quanto é lugar. Tudo no batalhão gira em
torno dele. É uma sujeirada sem tamanho, chega a dar nojo – afirma
Rodrigo.
A rádiopatrulha é um dos serviços mais
cobiçados pelos policiais porque é um dos poucos em que “não é o polícia
que corre atrás do dinheiro, mas é o dinheiro que vem até o polícia”.
São os “ratrulheiros”, como diz Rafael. Ele atribui a vantagem obtida
pelos policiais corruptos “à sempiterna tendência do carioca em querer
se dar bem”, a velha Lei de Gérson.
– Se um PM exige dinheiro por conta de
uma infração de trânsito que não existe ou ele é burro ou maluco — diz
Rodrigo, acrescentando que jamais conheceu algum PM que cobrasse propina
de alguém que estivesse dentro da lei.
Com os estabelecimentos comerciais, uma
rádiopatrulha pode conseguir bons acordos para estar lá na hora do
fechamento – os “fechos”, que nada mais é do que o fornecimento de
segurança particular com o aparato estatal. Já as rondas escolar e
bancária são coordenadas pelo comando do batalhão, de acordo com seus
próprios interesses. Mesmo no caso de atendimento a mortes naturais, os
PMs, a pretexto de orientar a família do morto, fazem acertos para
favorecer a funerária que vai lhe garantir a “cerveja”.
No serviço de motocicleta, Rafael e um
sargento veterano tomaram muita propina de motoristas infratores até que
um dia tentaram extorquir dinheiro de um amigo do chefe do serviço. Aí o
negócio babou. Rafael lembra que o sargento era bem-humorado. Quando o
motorista infrator lhe oferecia um “café” para fazer vista grossa a
alguma infração, o sargento dizia que só tomava o Kopi Luwak, um
australiano que custa mil dólares o quilo. Indagado o que acha da
situação com a Guarda Municipal cuidando do trânsito, Rodrigo diz que
“melhorou, mas ainda não é ideal”.
– Existem, sim, diversos casos de
corrupção envolvendo GM, porém está sendo como na época do BPTran
(Batalhão de Polícia de Trânsito). No começo, está todo mundo
satisfeito, mas uma hora a merda vai feder. Pode esperar — afirma o
ex-PM.
No Grupo de Ação Tática (GAT), uma
mini-tropa de elite do batalhão, conheceu policiais que estão sempre
dispostos a combater o crime visando principalmente os próprios bolsos. O
destemor deles tem uma função objetiva: atuar em operações
clandestinas, como a que invadiu o Morro dos Macacos pela mata e fuzilou
sem anúncio um grupo de traficantes que estava de plantão na boca. O
líder do grupo era um sargento ferrabrás. Certa vez, ele próprio foi se
vingar de um desafeto e, sem querer, eliminou também a criança que
acompanhava o homem, num carro. Ficou muito tempo assombrado por esse
pequeno fantasma. Mais tarde foi executado por assaltantes na Avenida
Dom Hélder Câmara, diante de toda a família, na volta do jantar em que
comemorara sua aposentadoria da PM. Os criminosos desconfiaram que ele
era policial. Era seu último.
Ainda no 6º BPM, o soldado Rafael conta
como funcionava também o esquema do “morrinho”, um dos mais bem
organizados planos de achaque a usuários de drogas da cidade, que se tem
notícia. O livro conta que teve muito policial que construiu sua casa
com o dinheiro extorquido de dependentes químicos, naquele golpe. Os
policiais montavam uma “campana” (vigilância) numa área vizinha ao Morro
dos Macaos, em Vila Isabel, de onde podiam observar, a uma distância
segura, toda a movimentação na boca de fumo do Morro da Mangueira, uma
espécie de “drive-thru” do tráfico. Segundo Rodrigo, frequentavam o
local celebridades, pagodeiros, advogados, “playboys”, médicos e até
mesmo policiais Ali escolhiam os usuários de drogas que deixavam a
favela em carros importados e acionavam outra dupla de policiais que
estavam num ponto estratégico. Um dos casos que mais rendeu aos
achacadores, contado em 12 páginas do livro, foi o de um empresário
norueguês com negócios no Rio acompanhado de uma loura, advogada, que
pagou lição de moral para os PMs até que se descobriu o que o
estrangeiro guardava na cueca — papelotes de cocaína. Num só “bote” os
PMs arrecadaram R$ 10 mil mais US$ 2.500. O dinheiro foi pago no belo
apartamento da advogada, em São Conrado, onde os policiais assaltaram
até a geladeira da vítima.
– Policial tem que ganhar bem. Não para
enriquecer, mas para poder pagar uma faculdade, ou a escola dos filhos;
as prestações de um carro e o financiamento de uma casa. É claro que não
importa o valor do salário sempre haverá alguém propenso à corrupção —
nossos queridos políticos estão aí e não me deixam mentir. Entretanto
acho difícil encontrar um policial que se arriscaria perder a farda e um
salário de R$ 4 mil por um amarrado de queijo apenas ou por uma bacia
com peixes, como já vi acontecer. Com efeito, se a carreira oferecesse
um salário razoável, atrairia uma parcela mais selecionada de
interessados no concurso, o que elevaria o nível cultural e social dos
candidatos — afirma Rodrigo.
Mas o policial ganha mal (R$ 1.200 o
salário inicial) e muitas vezes acaba vendo nas situações irregulares
oportunidades de complementar a renda com o menor esforço possível. Essa
postura, por sua vez, aumenta a desconfiança da população nos agentes
da lei, o que foi verificado semana passada em pesquisas do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública. O ex-PM Rodrigo Nogueira concorda que
os cidadãos cada vez desconfiam mais dos policiais militares:
– O carioca por vezes tem mais medo de
encontrar uma viatura da PM no breu da madrugada do que um bonde armado
de traficantes indo de um baile a outro. A visão que a população tem da
PMERJ está tão desgastada que é preciso um reset. Foram anos de
abandono, negligência, de chacinas como a do Borel, de Vigário, da
Candelária, da Baixada. Em outros estados a aceitação da população é
maior, muito embora o modelo de militarização das polícias esteja sendo
cada vez mais questionado. Contudo, o Rio não encontra paralelo quando o
assunto é violência policial. Todos são culpados,mas sobretudo as
nossas autoridades políticfas, que perdem tempo ocupadas nos seus
cambalachos que se esquecem (ou não estão nem ai!) de quanta gente está
morrendo nessa guerra miserável, que nunca termina e não tem vencedores.
Só perdedores.
A recíproca também é verdadeira, observa
Rodrigo: “A população se torna o inimigo, ao homiziar o traficante, dar
guarida ao “157″ e bater palmas ou dar de ombros quando um PM é
estralhaçado pelas balas dos bandidos. É um círculo vicioso: o cidadão
não confia no PM e o PM não confia no cidadão”.
O ex-PM critica também a militarização da
força e a disparidade entre os processos de expulsão de um praça e de
um oficial. No caso do praça, ele lembra, a decisão é rápida, depois que
o policial é submetido a um conselho de disciplina. “É virtualmente
impossível que o oficial seja expulso”, observa. Com mais liberdade para
agir são os oficiais quem incentivam os comandados a extorquirem mais e
a matar mais, conclui Rodrigo.
“Enquanto a Academia de oficiais
continuar formando líderes desqualificados, pretensiosos e, acima de
tudo, aproveitadores da ignorância dos praças, o ciclo de roubalheira
continuará se renovando um dia após o outro. Assassinos obedecendo a
assassinos, ladrões prestando continência a ladrões e depois com a mais
deslavada demagogia o comandante-geral vem crucificar um ou outro
policial preso por cometer algum crime de repercussão na mídia!”,
escreve Rafael.
No livro, o soldado Rafael não deixa
pedra sobre pedra da corporação. “Ingenuidade pensar que no Bope não tem
ladrão. Apenas o objetivo e a forma de escambo variam, pois enquanto o
barriga azul cata tudo que estiver pela frente, o caveira corre atrás da
mochila (que leva o dinheiro das bocas) e dos bicos (fuzis)”, escreve.
Apesar de descrever detalhes e histórias
de policiais com quem trabalhou – que podem vir a ser reconhecidos por
ex-colegas – Rodrigo diz que não há receio de que alguém seja
descoberto:
– Procurar indícios de crime em minha
obra seria como procurar uma machadinha num quarto fedorento de São
Petersburgo ou um pilão de cobre esquecido num bolso de algum capote
velho – ironiza.
Com estilo dos melhores trailers de
suspense, Rodrigo garante que não se autocensurou em nenhum momento, mas
mantém sob sigilo os nomes dos personagens da trama.
– É óbvio que tratar de assuntos tão
delicados como os de meu livro há que se usar o bom senso, até porque
existem outras pessoas envolvidas e não é conveniente arrolá-las em
dinâmicas e situações que gerem embaraço. Não diria que me autocensurei,
pois contei tudo. Entretanto, sempre cuidando para preservar terceiros e
esforçando-me para manter a integridae da história. Onde isso não foi
possível, o romancista entrou em ação e deu jeito no problema – conta o
ex-PM escritor.
Como conhece bem o sistema ao qual esteve
ligado durante cinco anos, Rodrigo pode mesmo salvar a pele com a
decisão de proteger nomes e locais exatos das histórias contadas no
livro.
Leitor voraz que diz não apreciar
literatura policial, Rodrigo conta que desistiu de ler “Tropa de Elite”,
o livro que transformou os integrantes do Bope em heróis, e “Sangue
Azul”, outro livro sobre a corrupção da PM do Rio. “O texto muito pobre e
a inverossimilhança me desanimaram”, critica.
Com uma citação de Nietzche (“Quem
conhece monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E
se você olhar longamente para um abismo, ele também olha para dentro de
você”), o livro tem referências literárias difíceis de se achar no texto
de um ex-PM que conseguiu entrar para a faculdade de direito com o
dinheiro ilegal, já que seu salário era de apenas R$ 750,00. Ele cita,
entre outros, H.G. Wells e Francis Coppola. Aos 9 anos de idade, venceu
um concurso de redação, cujo prêmio foi uma coleção luxuosa das
principais obras de Monteiro Lobato. Mais tarde, na Marinha, onde quase
chegou a ser cabo, recebeu o prêmio de melhor poesia num concurso, o que
por muito tempo foi motivo de piada no quartel.
– Seria impossível eu escrever sem antes
ter tido contato com a literatura de verdade, com os textos que são a
base do meu pensamento. Os livros são, sem dúvida, instrumentos muito
mais poderosos que qualquer fuzil já produzido – filosofa.
Fonte: O Globo